sábado, 11 de fevereiro de 2012
Remanso horizontal
Caminhava exausta pela mata vazia. Meus olhos, as bolas de gude diluídas, que era como Dé os chamava quando eu chorava, pareciam agora meramente gris. Talvez por causa do céu que ameaçava chover forte e, quem sabe, — pensava comigo — lavar essa indignação impregnada em cada centímetro de mim antes que eu chegasse ao fim da trilha.
Parei, ofegante, apoiando as mãos nos joelhos e imaginando quantos mil metros mais teria que caminhar até chegar ao Cabo da Estrela. Olhei para trás. O fim da floresta se perdia, entre tantos quilômetros e árvores. Mas não iria desistir. “Não agora.” Recuperei o fôlego e retomei a caminhada, em outro ritmo, desacelerado.
A Serra, vista dessa forma cautelosa, tinha ares obscuros. Parecia assimétrica, confusa, quase sombria. Era bonita, certamente, mas uma vaga apreensão começava a me inquietar na velocidade dos meus passos, que cada vez menos queriam estar ali. Não eram os ruídos. Não era sede, nem fome, nem sabia o que era. E sua voz, cadê? Agora, nem que eu quisesse, Dé viria me atormentar sussurrando-me ao ouvido qualquer coisa inconveniente. Até nisso era perverso.
Mas estava acabando. A agonia tinha seus minutos contados e, mesmo que seu tamanho fosse diretamente proporcional ao da trilha, a Serra da Pena não era infinita. Ainda que parecesse. Parava, respirava, prosseguia. Sempre este ciclo, oscilando entre angústia e resignação.
Ironicamente, eram 16h20min quando decidi olhar as horas, e meu celular havia recuperado o sinal. Quatro e vinte, quatro e vinte, quatro e vinte. "Google it", ele disse. Não foi necessário. A tal prolixidade demorou a se extinguir. Imaginei por um instante o que aconteceria caso resolvesse telefoná-lo naquele minuto e bradar ofegante que o amava, apesar de tudo. Recobrando a consciência do quão ordinário seria isso, desejei simplesmente que alguma espécie de máquina do tempo fizesse minha vida retroceder dois meses e dezessete dias, e tive raiva de mim logo após.
Finalmente, a floresta chegava ao fim. Já conseguia avistar, entre a folhagem, o azul distante do oceano, e a satisfação estampada em meus olhos agora azuis — talvez pela redução das árvores que dificultavam a passagem de luz — me fizera correr em direção ao Quenio.
A trilha terminava sem sinal de chuva. Ao contrário, o sol se exibia impiedoso e competente. Gotas grossas de suor escorriam pelo meu corpo enquanto eu deitava no chão causticante e me perguntava como o céu mudara de repente. “Talvez tenha estado assim o tempo todo. As nuvens não passaram de mais uma de minhas sensações tolas”, pensei.
Após o longo tempo em que permaneci jogada naquele chão fervente, o sol começou a ensaiar sua despedida. 17h20min. Uma hora de pensamentos lúgubres. Livres. Tirei os sapatos e andei em direção à beira do penhasco. Enquanto observava a rebeldia do mar contra as rochas, me preparei pra reviver a mesma cena dos tantos sonhos repetidos: O eterno vôo rápido, o impacto mortal da queda. O corpo jogado ao fundo, emergindo lentamente à superfície. Ferido, desfigurado, reduzido ao seu valor real. Se ainda restassem sinais de movimento, não importaria — não se distinguiria morte de vida. Seria tudo perfeitamente inevitável.
Abri os olhos, de volta a realidade, e contemplei o belo remanso horizontal. Comecei a sentir o velho vento frio dentro da alma... Serena, calma, sabia ser o momento.
Porém, a ponto de seguir meu fado, vi alguém. Era um homem e vinha em minha direção. Não sabia o que sua presença significava. Não desejava saber. Independente do que fosse, não trazia consigo minha absolvição e disso eu tive certeza porque, por mais piadista que fosse Deus, seu humor era negro e imoral.
Havia chuva. Com a ajuda das bandeiras esquecidas do São João, ela ornamentava a tarde com harmonia, tornando-a ainda mais apática e pardacenta — mesmo que, antes da sua chegada, me parecesse improvável que algo fosse capaz desse feito. Havia, pois, murmúrios. A habitual insatisfação, aqui, ali e ao redor da piscina vazia. É sempre assim, as pessoas não gostam da chuva. Mas, nessa tarde, ela me pareceu amigável. Talvez por sua transparência, seus ares de melancolia, sua vinda repentina e irreversível. Chuva é que nem tristeza: Não se pode pará-la ou mandá-la embora. Há que esperar. A água não traz respostas, mas também não provoca dúvidas. Não causa esperança, tampouco medo. Não conta histórias e nem carrega consigo nossa descrença enquanto flui para o ralo da piscina. Apenas cai. Simplesmente, e com a resignação de quem bem conhece as linhas da própria mão. E nem isso a torna submissa: Chuva não pede permissão para molhar. Eis a nossa diferença. Nessa tarde, eu começava a me fundir com ela. Minha presença era agora quase silenciosa e minha pele adquirira sua palescência quase translúcida. O azul dos olhos tornara-se cinza, e a água que caía deles não fazia diferença para mim. Mas para os outros. Mesmo sem molhar ninguém. Não é justo. O Sol é quem deveria pedir permissão para brilhar, ou ao menos explicar o motivo de sua aparição. É ele quem me faz adoecer, quer me deixar de cama, exausta de tanto fugir. Olhá-lo diretamente, por outro lado, pode cegar. Eu nunca olhava. Eu corria. E chorava. E chovia.
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